quinta-feira, 1 de abril de 2010

domingo

Era grande a casa, grande o quintal, era grande a mesa de domingo reunindo todo mundo de manhã. Vô Antônio contava histórias. Um monte de mundo tinha dentro de Vô Antônio. João ria que só escapulindo por debaixo da mesa pra misturar cuscuz e terra. Era o melhor dia da semana, tinha acabado de começar época de manga, e logo logo a mangueira ia acertar a cabeça de alguém, sorte que na casa só tinha cabeça dura e que Vó Zefa costurava muito bem. Eu ficava imaginando o dia que a manga ia cair em um cabeça mole.
Depois do café era hora do rio. Gostava de boiar, ouvir o mundo da água,  árvores conversando... ficava horas até o sol terminar de se espreguiçar, quando ele 'panhava quente, era hora do almoço. 

Na geladeira ficava a lista de comidas para durante a semana a gente votar em qual seria a de domingo. O voto era secreto, e quando o dia chegava, antes do café da manhã, Vó e Vô se trancavam na cozinha pra contar os votos.  A gente ficava debaixo da mesa cochichando pra saber no que cada um votou. A expectativa do que seria fazia a fome triplicar. A verdade é que por qualquer coisa a gente inventava um jeito novo de gargalhar. O riso era nosso código. 

Tinha "riso-passarinho", "riso-torto", "riso-veja minhas amígdalas", "riso-essa foi muito boa", "riso-lagarta", "riso-preguiça", "riso-descarado", "riso-fiz alguma coisa errada". Cada riso, como deu pra perceber, tinha um nome, e cada um de nós tinha um riso-codinome que usávamos quando queríamos chamar um ao outro sem adultos perceberem.  Riso-João, riso-Maria, riso-Alice, riso-Mateus. O riso-Lucinha era o mais engraçado, quando tínhamos que falar com ela era um deus nos acuda porque todo mundo começava a rir no começo do riso. 
O almoço vinha seguido de muitos doces que a gente mesmo fazia. O de amora era o mais gostoso.  Vovó  era a amora de Vovô, que era o amor de Vovó. Eu queria melanciar alguém pra dizer "Eu te melancio". Mas Mateus disse que não podia, porque eu ia inventar uma palavra pra ficar no lugar de amor, e não pode. Vô Antonio disse que era mania de adulto de Mateus e que eu podia melanciar quem bem quisesse. 

Escolhi um menino que cuidava do rio, ele tinha jeito de água que cresce pra dentro. Eu disse a ele "Você me melancia", ele se riu inteiro e disse que eu enfeitava o rio. Não sei se gostei, mas achei bonito. Enfeite é coisa que a gente pendura na parede pra deixar as coisas embelezadas no dia do aniversário.  Um dia ele me deu um papelzinho dizendo "Você me jabuticaba", virei uma boba e a gente começou a se lambuzar comendo jabuticaba e melancia na beira do rio enfeitado.
Quando domingo começava a querer se deitar a gente fazia dengo pra ele contar mais história. Só quem conseguia convencê-lo à dar uma esticada e tomar mais um cafezinho era Vó Zefa, que sabia segredo dele. Ela era boa em convencer pessoas, sempre sabia dos segredos. Vô Antonio conta que é porque ela é apassarinhada. De manhã bem cedo ela fica cochichando com um monte de bem-te-vi. Esses dias eu tava com o menino no rio e passou um bem-te-vi, saí correndo pra contar antes que o fofoqueiro chegasse. Quando contei esbaforida que passei a tarde jabuticando no rio, ela riu, disse que já sabia, e me aconselhou a ficar amiga dos passarinhos antes que eu começasse a carambolar o mundo. 
Quando chegava a noite era muita estrela, mas tanta que várias vezes pra esvaziar o céu umas se jogavam pra gente. Teve uma noite que João tava dormindo e uma estrela caiu dentro da boca dele. Ele se engasgou de estrela, foi um corre corre pra dar água, mas ele disse que não queria que a estrela morresse afogada, que ia engolir a seco mesmo. E ficou lá se balançando com os braços levantados. Não concordei, estrela dentro d’água é estrela do mar, ela só ia ter uma casa nova, e ele o mar estrelado na barriga. Todo mundo me mangou. Desde então, durmo com um copo d’água do lado da cama, bem encostada na janela, pra não perder tempo de ter o mar dentro de mim.
De noite ficava todo mundo na varanda se espalhando, Vô Antônio fritava banana da terra e a gente enchia de açúcar com canela, enganando os adultos e se empapuçando de doce perto da hora de dormir. Vó Zefa tinha uma amiga violeira que  tocava e cantava pra gente, Dona Luzia, a voz dela parecia mágica. Uma música de ninar e era criança caindo em tudo que é colo. Aí chegava a hora dos adultos. Quando eu acordava já era dia de esperar domingo chegar. 






 * Ilustração de Marta Medeiros (Maíra, fevereiro de 2009 - março de 2010)