Tenho o mar atravessado em minhas costas
e uma bola de fogo na cabeça.
O mesmo fogo de que é feito o chão da terra.
Minha língua é de barro vermelho e molhado.
Nascida em dezembro, sou eu meu cavalo.
- De trovão e terra serão os dias em sua barriga. Vai parir movimento pelo olho. Nas cartas; o Sol. Abundância de caminho. No céu; Tempo está em mim. Peixes me cobre os seios e em disparada, as patas do cavalo fazem chegar à cidade bandeiras. De frente; Iansã dança na boca da tempestade.
No desamparo da noite a mulher cozinha os dias. No fulgor das facas o tormento dos unguentos. Preparo feito na fadiga das horas cura insônia e sortilégio. Na pele tatuada de fogo a encruzilhada do gosto. É de abismo a língua entregue à liquidez. Cozer é cultivar a boca e o tempo. (Maíra, 15 de maio de 2015) Foto do filme mexicano "Como água para chocolate". Na cena, a personagem Tita prepara a receita "Codorna ao molho de rosas", prato que provoca paixão e volúpia nos que saboreiam.
De manhãzinha, quando a padaria ainda está vazia e a banca de jornal começa a gritar as notícias do dia, na casa do fim da Rua de Jabuticaba, Três Menininhas fabricam as lágrimas do mundo inteiro. Elas tem cabelos longos e cheios, como grandes copas de árvore. Um é vermelho, outro amarelo e o terceiro verde bandeira. Um tal Sabiá, que passeia por ali e não tem muito o que fazer, percebe que todos os dias elas estão a trabalhar. Decide então, uma peça pregar.
Certo dia, uma das Menininhas deixou a última fornada de lágrimas na janela, descansando com o vento. Essa é uma das partes da produção de lágrimas, elas descansam no vento para crescerem fortes. O sabiá, esperto que é, correu até o céu e convenceu Dona Nuvem Grande a desabar na janela das Três Menininhas, causando um estrago jamais visto. Foi água pra tudo que é lado. As lagriminhas, as lagrimonas, as lágrimas na puberdade, todas elas se misturaram à chuva. Era impossível separar. Tiveram que parar a produção, limpar o aguaceiro e começar tudo do início. O sabiá ria pra se acabar, - O mundo agora não ia ter como chorar! Danado que é, no meio da confusão, se escondeu dentro dos longos cabelos vermelhos de uma das Menininhas, para ver de perto o desespero das certinhas.
As Três, agoniadas coitadas, agora precisavam de uma dor muito forte para reiniciar a produção de lágrimas. Quando assumiram a fábrica ela já estava a todo vapor e nunca havia parado de funcionar. Agora, quanto mais demorassem, mais tempo o mundo ficaria sem chorar. Saíram então em busca da dor.
Em menos de um dia as confusões já começavam. Os hospitais estavam lotados de pessoas com o chamado "nó na garganta". Os bebês não sabiam mais como avisar quando estavam com fome, com sono, ou de caquinha. O cinema então! Coitados... os prêmios agora seriam dados à quem fizesse alguém chorar!
Até que o pior acontece.
As Três Menininhas recebem a notícia mais temerosa! Urgente! Telegrama vindo diretamente da Fábrica de Gargalhadas! "As pessoas não choram mais de tanto rir." É o ápice! Atenção! Atenção! Calamidade pública! Acionem os governos, movimentos, todos os reis, rainhas, mundo mágico, mundo real, Terra do Nunca, Contos de fadas! Todos Aqui! Chamem passarinhos, duendes, gigantes, meninas, bruxas, meninos, pedreiros, padeiros, pipoqueiros, fadas, homens, mulheres, e principalmente: todas e todos os contadores de histórias!!!
Os mundos entraram em parafuso. Em pouco tempo, filas e mais filas de doadores de dor. Todos apresentavam suas dores para as Três Menininhas e nenhuma era suficiente...
O sabiá finalmente percebe a confusão que causou e decide ir em busca da dor mais forte. Como pôde brincar com coisa tão séria?! Ele sobrevoa dias e dias com a consciência pesada. Viaja países, atravessa continentes... Até que enxerga uma menina sozinha, a única que parecia não estar preocupada com a falta de lágrimas de todos os mundos, e ela parece tão triste, mas tão triste, que o mar que ele estava a olhar do céu, parecia ser o que de lágrimas ela teria derramado. Sentada entre as pedras da praia, ela cantava um canto triste, canto de dor de alma.
O sabiá então, pousou sob os pés da menina e perguntou:
- Menina, como faz pra ter dor tão forte?
Ela respondeu com os olhos firmes e aguados:
- Ahhh meu passarinho... é dor de amor... dor de amor que foi embora.
Nesse instante, uma lágrima escorreu pelo rosto da menina e se foi com água salgada do mar...
Não se sabe como, mas instantaneamente, quando a lagriminha única no mundo desaguou, as Três Menininhas sentiram um aperto bem forte no peito, mas tão forte, que saíram correndo para a Rua das Jabuticabas deixando todas as autoridades, de todos os mundos, que estavam reunidas na Terra do Nunca a falar sozinhas. Quando abriram a porta de casa, lá estava o Sabiá, muito ressabiado, com um potinho de água azul, a cantar o canto triste da Menina.
Desde então, as Três Menininhas não param de fazer lágrimas. O sabiá está lá, a trabalhar com elas, cantando e protegendo a casa no fim da Rua de Jabuticaba.
E a Menina que fez a fábrica de aguinha agridoce voltar a funcionar, essa teve tanta dor no peito, mas tanta, que se fez lágrima e se misturou ao mar.
"Minha sabiá, vem me dizer, por favor, o quanto que eu devo amar, pra nunca
morrer de amor..."
(Maíra Guedes - 01 de fevereiro de 2007, Salvador - Ba - revisado em 14.05.2014)
Música: "Zabelê", de Gilberto Gil e Torquato Neto
cantada por Caetano e Gal.
Ilustração: Salvador Dali para o livro "Alice no país das maravilhas"
Habita meu corpo sul, tão largo e seu, exposto ao sol. Habita meu sexo cru, alvoroço dos ventos, envolto em terra. Me faz hábito e partilha no sertão das horas curvas.
(Maíra, 08 de maio de 2014)